Fechamos o corpo
como quem fecha um livro
por já sabê-lo de cor.
Fechando o corpo
como quem fecha um livro
em língua desconhecida
e desconhecido o corpo
desconhecemos tudo.
(Paulo Leminski)
Pode parecer simples, mas para muitas pessoas entrar em contato com o próprio corpo é um desafio e, em alguns casos, beira o impossível. No livro "O corpo guarda as marcas: cérebro, mente e corpo na cura do trauma", Bessel Van Der Kolk traz inúmeros exemplos de pacientes vítimas de Transtorno do Estresse Pós Traumático (TEPT) que não conseguiam sentir áreas inteiras do corpo levando a uma insensibilidade sensorial grave. A impossibilidade de ter acesso às sensações físicas que transmitem os estados internos do corpo afeta desde as funções básicas do organismo, como respiração, excreção, ciclos de sono e vigilia, até a capacidade de pensar e tomar decisões.
Pessoas traumatizadas se sentem continuamente inseguras dentro do próprio corpo, pois a situação traumática que foi vivida no passado se faz presente por um desconforto interno muito intenso. A forma que encontram para se livrar desse desconforto é se dissociando do corpo e bloqueando o acesso às sensações viscerais desagradáveis. No entanto, ao ignorar as mensagens do corpo, tornam-se incapazes de distinguir o que é perigoso e nocivo e o que é seguro e propício. Pode haver também dificuldade de encontrar palavras para nomear sensações e sentimentos. As doenças psicossomáticas são um exemplo de adoecimento em que os sintomas físicos expressam alguma questão emocional e/ou psíquica que não foi devidamente vista e cuidada. Em suma, a incapacidade de discernir o que acontece no corpo produz uma perda de contato com as próprias necessidades dificultando a tarefa de cuidar de si mesmo.
"Para mudar, as pessoas precisam tomar consciência de suas sensações e da maneira como o próprio corpo interage com o mundo que as rodeia. A autoconsciência física é o primeiro passo para se libertar da tirania do passado" (Bessel Van Der Kolk).
A psicoterapia é um espaço que favorece a ampliação de nossa sensibilidade e da maneira como percebemos a nós mesmos, o outro e os ambientes em que vivemos. Na medida em que entramos em contato com o corpo, podemos reconhecer pontos de tensão, bloqueios e padrões que se repetem involuntariamente. Aos poucos vai sendo possível dar nome para o que até então era indizível e, assim, vão se construindo pontes que conectam as sensações físicas, os sentimentos, a forma como agimos e reagimos a determinadas situações. Perceber o que reproduzimos no piloto automático é o primeiro passo para a construção de novas formas de nos relacionar com nós mesmos e com os outros.
As práticas e exercícios corporais são recursos utilizados no tratamento para promover maior maior contato e integração entre corpo e mente. Outra estratégia utilizada é por meio da pergunta: "como você se sente quando fala sobre isso?". É uma pergunta que provoca certo embaraço e costuma suscitar respostas vagas - "me sinto bem", "estou tranquilo", "me sinto triste", "estou ansiosa". Mas... como é se sentir bem? Como sinto minha tristeza? Em que parte do meu corpo a sinto? Sinto meu coração apertar? Formigamento? Quais são os gatilhos que acionam determinada emoção em mim? Que experiências anteriores estão associadas a essas impressões?
Mesmo aqueles que não foram vítimas de traumas agudos ou crônicos também podem apresentar limitações em relação a autoconsciência corporal. Afinal, estamos todos inseridos em uma cultura (ocidental e moderna) que trata o corpo como objeto a ser controlado e submetido à uma série de exigências (desempenho, produtividade, padrão de beleza, eficiência, etc). Seguindo essa toada, fechamos o corpo como quem fecha um livro, perdemos o contato. E o que será que a "língua desconhecida" do corpo nos tem a dizer?